Olá, boa tarde. Meu nome é Rafaela, tenho 36 anos, sou moradora do Rio de Janeiro. Faço parte do movimento cultural hip-hop representando as mulheres. Mulher negra LGBT, produtora cultural, mestre de cerimônias, MC. Gostaria de agradecer pelo convite e pela importância da fala, né, sobre um assunto que é muito relevante e é essencial a gente estar debatendo sobre a questão da saúde sexual, não só dentro do movimento LGBT, do movimento hetero também, e do movimento de gêneros musicais. O hip-hop em si é um movimento que é salvador de aguas e de vidas, divisor de aguas e salvador de vidas, mas também a gente sabe que tem um lado muito machista e muito preconceituoso. E durante muitos anos vem sendo embatido, um embate muito grande, de inclusão das mulheres, do público LGBT dentro do hip-hop, na sociedade, direito de fala e de igualdade, de deveres e lugares. E a história que eu vou contar para vocês resumidamente, que é muito grande, foi uma história muito séria, que abateu muito o movimento cultural hip-hop do Rio de Janeiro, e chegou em outros estados também, de um amigo que a gente perdeu com o vírus do hiv, mas a história se iniciou que ele era um MC muito famoso, inclusive de uma instituição, de uma das maiores instituições do hip-hop no Brasil. E ele trabalhava né em um dos mercados de centros populares daqui do Rio de Janeiro como modelo, apresentando a sua arte, vendendo roupa, né, vestindo as pessoas pretas, né, que gostam da cultura do hip hop e usam o seu estilo de moda dentro da vertente do hip-hop. E surgiu um comentário que ele estava doente e que estava passando dificuldade e na verdade ninguém sabia o que que era, qual era a veracidade do fato. E nessa época o coletivo do hip-hop era muito grande, tinha mais de três mil pessoas num grupo. E esse grupo era usado para falar de festas, palestras, da gente se encontrar, trocar uma ideia, e até também obter relacionamentos. E eu, por ser uma pessoa muito conhecida, articulada, fazer parte do movimento também, conhecer todo mundo, e um dia me deparei, a primeira situação, me deparei com um amigo que falou: “Rafa, eu vi o vulgo”, que eu não vou falar o nome da pessoa, que a pessoa é muito conhecida, e, enfim, “eu vi o vulgo ontem, e ele tava deitado na rua, na Praça Tiradentes”, que é uma praça referente que tem aqui no centro do Rio de Janeiro, “e eu falei com ele e ele não me reconheceu. E ele tá dormindo na rua, e eu não tô entendendo nada”. Aí eu falei “Sério? ”. “Sério.”. Aí só que já tinha saído essa história no grupo, eu fui no comitê e disse: olha, ontem fulano me falou que viu ele deitado na Praça Tiradentes dormindo na rua. E que ele tá comendo na rua todo dia, que a galera tá dando alimentação pra ele. Enfim, só que ele já estava com essa doença, com vergonha de falar pras pessoas com medo de preconceito e do que as pessoas iriam criticar, e tava guardando todas essa situação pra ele. E não tinha feito tratamento, não tava tomando a medicação. E eu acho que a doença já tava num nível grave. E dentro dessa situação, ele tava se relacionando com outras pessoas, outras meninas, que são amigas entre si, em comum. E ele tava doente e tava passando isso pras meninas que ele tava se relacionando. Aí essa história foi comunicada no grupo e foi lançada uma campanha para poder ajudar ele: arrecadação de alimento, arrecadação de comida, de alimento, de comida, de roupa, de material de higiene. Tava até sendo feita uma vaquinha para ver se alugava um quarto para ele não dormir na rua. De um modo geral, uma campanha social para resgatar ele da rua porque dentro da cabeça das pessoas, da galera, do grupo em geral, ele estava em necessidade, em situação de rua, ou ele estava usando droga. Ninguém sabia realmente a veracidade dos fatos e o que era, porque ninguém conseguia ver. E na verdade as pessoas que eram braço direito dele, que se diziam braço direito, sabiam da doença que ele tinha e tipo abriram mão de poder ajudá-lo, e ficaram quietas e não falaram nada para ninguém. Foi lançada essa campanha até que um dia, todo mundo procurando ele, veio a notícia que ele tava internado, em estado muito grave num hospital em Nova Iguaçu, que é um hospital da Baixada aqui. E quando essa notícia chegou a campanha já tava sendo lançada. Então já tinha sido arrecadado. Só que antes, eu vou retificando o que eu vou falando, só que antes dele ser internado em estado grave, chegamos a encontrar com ele, demos o dinheiro na mão dele, foi 300 e poucos reais a quantia na época, que foi responsável na mão de uma pessoa, ele comeu, ele trocou de roupa, tava super feliz, super alegre, agradeceu todo mundo, mandou um áudio, mandou um vídeo para a galera do grupo, a galera recebeu de todo coração e a gente se comprometizou de ajudá-lo e tirá-lo dessa situação. Só que dentro de uma semana, chegou a notícia de que ele tava internado em estado grave. E a gente achou meio que estranho porque da semana a gente tinha conseguido tudo, alimentação, moradia pra ele ficar e tal tal tal, qual seria o motivo para ele ter ficado doente em estado grave? E eu, antes, de antemão, sou formada na área da Saúde desde 2002, sou auxiliar de enfermagem, né, e trabalhei aqui durante cinco anos na Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Então a articulação dentro dos hospitais e dentro da rede da área de saúde, eu conheço todo mundo porque eu fazia o atendimento da galera da população de rua, dos institutos, dos abrigos, das casas dos menores infratores e também dos moradores das comunidades do Rio de Janeiro, através do CRAS que a gente ia fazer visita domiciliar. Aí chegou essa notícia. Aí eu fui, entrei em contato com uma amiga minha, né, a Érica, que hoje em dia ela tá em São Paulo, da área da Saúde abriu seu próprio negócio. Desculpa. Aí eu falei assim: Érica, você tem como ver o nome desse paciente, isso, isso e issopra mim? Aí ela falou assim: Eu sei quem é, o vulgo. Então ele está internado em estado grave. Você tem como ver aí pra mim qual é a situação? Eu não sei qual era o medo, o que se passava na cabeça da galera para esconder isso, que eu acho que se tivesse corrido contra o tempo ele não, ele não teria falecido, que ele teria tido um outro atendimento, né, tomado os coquetéis, taria fazendo o tratamento. Taria se alimentando, porque a campanha foi para isso, para não deixar ele na rua, para não deixar de comer. Mas por outro lado também a gente entende que são pessoas que estavam ligadas somente no dinheiro, né, não era na saúde, nem em salvar a vida do amigo. E nem pelo menos de dar um enterro digno ao amigo. O amigo foi enterrado como indigente. E é basicamente isso meu relato. Dizer que a gente tem que se cuidar.  A gente enquanto movimento tem que cuidar de todos os movimentos. A gente tem que abraçar a todos os gêneros. A gente tem que falar. A gente tem que expor. A gente tem que fazer campanhas. A gente tem que debater muito isso ainda mais num período em que a gente vive dentro dessa sociedade, dessa construção política que querem nos destruir de qualquer maneira. E se a gente enquanto coletivo, sociedade civil, pessoas que lutam pelos direitos e deveres não fizermos essa união, esse vínculo, eu acho que vai ficar muito difícil as coisas, né, continuarem caminhando como já tão. Agradeço pela oportunidade e espero que seja válido para vocês.

E dentro disso de antemão a campanha rolando. Continuou rolando a campanha, a campanha de doação de alimento, de roupa, de dinheiro, e as pessoas que ficaram responsável que eram amigos dele sabiam da situação e não falou nada. Aí quando Érica me retornou em dez minutos falou que ele tava em estado grave, que a doença já tava na fase final, né, que ele tava com tuberculose e pneumonia já, e era por causa do vírus que ele tinha sido contaminado. E não tinha como fazer um retrocesso da doença, era só fazer as medicações e tal, e rezar por ele, para ele poder voltar e voltar a fazer o tratamento. Mas que o estado dele era muito grave. Se tivesse o contato de alguém da família, né, para se comunicar, e realmente aqui no Rio ele não tinha uma família. Ele tinha só essas pessoas que eram amigo dele. Eu fui e comuniquei isso no grupo, e rolou um retrocesso muito grande, né, porque as pessoas que ficaram responsável disso estavam se beneficiando através de material, de espécie, e sabia da doença do cara, e ao invés de ajudar no que ele realmente precisava, que era atendimento de saúde imediato, nunca foi feito isso e chegou a essa situação. E em menos de uma semana ele faleceu. E eu comuniquei às pessoas que eu sabia que ele teve relação sexual sobre a doença dele. Infelizmente isso se tornou uma banalidade, eu saí como fofoqueira, como mentirosa, fui ameaçada de morte, nas redes sociais rolou uma autodestruição da minha imagem. Mas graças a deus eu fui educada pela minha vó e pela minha mãe que a verdade em primeiro lugar, acima do que ela pode te causar, sabe, sempre a verdade. E que o nosso juiz maior é Deus. E não era justo também as pessoas tirando de um aluguel, de uma comida, do que poderia ser para ajudar uma pessoa que estava na necessidade, que estava realmente na necessidade. E as pessoas que estavam responsáveis por isso, se beneficiando a si próprias, enriquecendo, e fazendo não sei o quê, porque ele ganhou casa, ganhou roupa, ganhou telhado, ganhou material de construção, ganhou dinheiro. E até hoje ninguém viu esse dinheiro e ele foi enterrado como indigente, sendo MC de uma instituição muito renomeada daqui. Mas voltando ao objetivo maior que é essa doença do HIV, sobre essa história de um modo geral, é dizer que a gente tem que se cuidar, porque dentro da cabeça, não só do movimento do gênero musical, mas dentro da sociedade em si, né, que é o movimento LGBT que transmite a doença, é que é a galera que não se cuida, é que é a galera que tem maior índice de contágio. Realmente a gente tem uma época em que isso foi verídico, mas porque a gente não tinha uma instituição. A gente não tinha uma colocação. Não tinha um autoatendimento de saúde. Se a gente chegasse mesmo em uma unidade de saúde e dissesse “qual a sua opção sexual”, “ah, LGBT”, até o autoatendimento da pessoa que prestava atendimento em saúde era preconceituoso. As informações não era passada corretamente. Então às vezes você ficava até meio receoso de ir a um atendimento para saúde, para se cuidar, fazer os exames. Sobre a questão de parceria, de ter um relacionamento com uma pessoa. Às vezes a pessoa tava contaminada e tinha medo de falar com seu parceiro pelo preconceito, de falar “eu tou contaminado, a pessoa não vai querer ficar comigo”, sabendo que tem autocuidados, e esse preconceito existe até hoje. Mas eu acho que é essa campanha é super válida dentro do movimento LGBT, mas tem que ser principalmente pelo modo geral do movimento hetero em si, do machismo, do preconceito também do movimento hip-hop, para a galera se cuidar, usar preservativo mesmo, ir aos atendimentos de saúde, cuidar do seu parceiro, indicar pro seu parceiro os pontos, falar também pro seu parceiro e pra sua parceiro. Porque nós estamos falando de vida. E quando nós falamos de vida, o hip-hop é isso, ne. Salvar vidas, um divisor de águas. E esse é o objetivo de minha fala. E dizer que por causa de um preconceito machista, por causa de um bem material e financeiro, nós perdemos um grande artista. Poderíamos ter perdido várias vidas, que foi a minha vida que foi ameaçada de morte, do meu amigo, uma história que repercutiu e repercute até hoje. E eu enquanto mulher preta, do hip-hop, ativista, lésbica, me acho no direito de poder contar para vocês essa história, e dizer que o individualismo causa vários embates dentro da sociedade. E por causa de uma doença que eu não sei porque, qual o medo da galera de esconder isso.

E a segunda história que eu quero contar é sobre meu primo Thiago, um homossexual maravilhoso. A pessoa mais simples da vida que eu já conheci. A pessoa mais batalhadora que eu já conheci, ne. Sofria muita violência dentro de sua casa com sua mãe, com vício com álcool, com droga. Ele sustentava a família dele. Os outros dois irmãos também eram viciados. A irmã dele também tá contaminada. Foi contaminada nessa questão de se drogar com outros amigos, né, através de injetável. E também ela era ex presidiária e dentro da prisão ficar se relacionando sem preservativo, sem qualquer cuidado com as meninas. Até porque também a mulher não tem, relacionamento entre mulher e mulher não tem infelizmente esse cuidado de usar preservativo e não ter a contaminação. Mesmo que exista a camisinha feminina. Mas é complicado o contato e o modo de preservação, ne. E ele tinha um parceiro e durante cinco anos ele ficou com esse parceiro. E tava tudo bem. E dentro de um mês ele começou a se sentir mal, vários sintomas, passando mal, ia pro médico, fazia exames, e os médicos davam vários diagnósticos. Fazia exame de sangue, constava que ele tinha alguma coisa, mas os médicos não pediam exames especializados. Depois começou a afetar a visão dele, foi no oftalmologista e colocava colírio. E passava remédio e não melhorava. Ele começou a se sentir muito mal. Até que um dia ele tava se sentindo muito mal, uma febre muito alta, aí foi para a ajuda de socorro, chegou lá fez atendimento, fez todos os exames e constatou que ele tava contaminado pelo HIV. E o médico chegou, chamou o irmão dele e falou que queria mandar ele pra casa, que não tinha mais jeito, que ele tava em fase terminal. E ele faleceu no dia em que ele descobriu que tava contaminado. Ele veio pra casa, chegou em casa por volta de sete e pouco. Quando foi três horas da madrugada, eu recebi a ligação da irmã dele me pedindo socorro, dizendo que ele não respondia. E quando eu cheguei na casa da amiga da irmã dele, ele já tava em óbito. E a irmã dele falou que ele só questionava e falava por que que o Alexandre, que era o companheiro dele, tinha feito isso com ele. O cara tava contaminado, contaminou ele, tava já casado, tinha um filho. E foi isso, ele perdeu a vida, não é porque não se cuidou, confiou no parceiro dele. O parceiro dele que não se cuidou, contaminou ele, provavelmente a esposa tava contaminada também, o filho também. E provavelmente deve tá contaminando outras pessoas também. Então eu acho que a gente precisa muito falar sobre isso, sobre preservativo, mesmo que a gente esteja num relacionamento muito sério. É fazer o autoexame constantemente, mensalmente. É usar o preservativo. Qualquer pessoa que a gente conhecer. É se cuidar e estar sempre se cuidando. Tomar o autocuidado também, pensar no próximo, porque a gente não pode desejar pras pessoas o que a gente não quer pra gente. E é isso, agradeço pela oportunidade, foram duas pessoas que eu perdi, que eram importantes, para essa doença.