Bom, é… meu pai foi diagnosticado, ele recebeu o diagnóstico de HIV em 1997. Eu tinha doze anos e foi depois dele ter uma catapora, né. Pessoas da geração deles já tinham… Nessa época, não havia vacina para catapora, as pessoas todas, a maioria já havia pego catapora. E catapora é aquela coisa que se você pega uma vez, você não pega outra. E nem eu que nunca tinha tido catapora, peguei essa catapora dele, e foi a partir disso que os médicos, ou ele desconfiou, eu não sei exatamente. E aí ele foi fazer o teste e deu positivo. Foi bem num final de ano assim, fim de ano letivo, perto das festas de fim de ano. E a gente já esperava na verdade, eu já esperava, minha mãe também, mas eu com doze anos não refletia muito sobre isso. Foi enfim, né, em relacionamentos extraconjugais. E aí por conta disso em casa tinha um clima e uma cultura de não falar sobre. Inclusive a orientação da minha mãe na época era para eu não contar isso para ninguém, era um segredo. E era um segredo porque ela acreditava que esse segredo estava me protegendo, tipo o segredo faria com que as pessoas não me olhassem com preconceito por ter um pai com HIV. Então…. Meu pai morreu em 2002. 2002? Não, perdão. Meu pai morreu em 2001. Mas não foi em decorrência de nenhuma doença do vírus, né, desenvolvida pelo vírus propriamente. Meu pai infartou e foi devido a complicações por causa do infarto. E nenhum médico falou sobre uma possível relação com o HIV, porque tem doenças que de fato são do HIV, quem está em fase final, naquela época era muito comum pessoas tarem, tipo passarem por, virarem pacientes terminais, né. Mas não foi o caso. Na verdade, ele pegou bem uma época em que os remédios começaram a melhorar um pouco, então a carga viral dele sempre foi muito baixa, num chegou a desenvolver grandes complicações, nenhuma complicação na verdade. Mas eu acho muito doido porque na minha família toda na época era um segredo, né, ninguém da minha família sabia exceto eu, minha mãe e meu pai. Não podia contar para ninguém. Eu não podia falar disso na escola, não podia falar disso com meus amigos, não podia falar disso com ninguém. Depois que ele morreu, por ele ser portador do vírus HI, do vírus, o caixão foi lacrado. E foi aí que minha mãe teve que explicar pras pessoas porque que o caixão era lacrado. E acabou contando para minhas tias que são as irmãs dela e tal. E eu acho muito doido porque, quando falam do meu pai, tentam associar de alguma forma o infarto à morte dele, ele morreu fazendo um cateterismo. O infarto que ele sofreu, tipo pegou a parte posterior do coração. Foi o infarto bem feio mesmo, o coração dele estava bem fraco. Ele não aguentou, é um exame muito invasivo. Mas a família tenta associar a morte dele com o HIV, assim, de alguma forma, né. Tipo: “ah, não, era isso porque ele tomava remédios e o colesterol dele tava muito alto”. Mas ele não tomava só remédios: ele tomava cerveja, ele comia, ele gostava de carne, ele comia muitas coisas que não, né, ele não tinha uma dieta fitness para ter um colesterol OK. E era uma pessoa mais velha, de 47 anos, é normal a gente ter o colesterol um pouco mais alto se a gente não toma cuidado depois de uma certa idade. “Ah, ele infartou porque ele não conseguiu lidar psicologicamente com o peso de ter uma doença tão fatal e tão absurda”. Talvez tenha um fator de nervosismo relacionado. Não sou psicóloga e, se fosse, não seria do meu pai, né, gente. Mas ele morreu com 47 anos, uma faixa etária muito comum de ter infarto, principalmente em homens, então não uma relação. Eu acho que todo mundo tenta relacionar assim, né, de alguma forma, né. Porque a AIDS é a doença, ela é inicialmente, né, e eu acho que isso, enfim minha família fez exatamente isso, cumpriu esse protocolo. Ela é a doença que a gente esconde, né. É o vírus na verdade, né, nem a doença. O vírus é o vírus que a gente esconde e depois ela é a doença terrível, né. Tipo, nossa, morreu, uma complicação horrível e tal, enfim. E acho que essa imagem por mais que hoje em dia a gente, quer dizer, acho que mudou um pouco, mas essa imagem para minha família tava muito, era muito presente mesmo, né. Tipo a minha geração viu o Cazuza na foto da Veja padecendo, então é tudo, tinha muito essa narrativa dramática ainda, né. Enfim… E eu acho muito doido assim porque na verdade tudo isso era completamente, não que eu lembro totalmente de detalhes, mas pensando na personalidade do meu pai, toda essa cultura, tudo isso que a gente fez ou falou é completamente contrário à personalidade dele assim, sabe. Ele era uma pessoa muito sociável, muito aberta, com certeza não queria viver num segredo dentro do armário assim. Tipo não falar da doença, ter que esconder no trabalho, todas essas coisas, né, que é bem comum até hoje, enfim. Eu nunca cheguei a conversar com ele sobre isso, eu tinha doze anos. Meu pai morreu, eu tinha quinze, eu estava no auge da adolescência achando família insuportável, então óbvio que eu nunca consegui ter uma conversa sobre isso com ele. E acho também que se conversasse não ia, eu não ia ter a reflexão que eu tenho hoje. Então eu não sei dizer assim, eu nunca vou poder falar o que ele pensava sobre, quais eram as elaborações dele em cima do vírus, né. Não sei, enfim…. Eu acho uma pena que eu não saiba. Tipo, lamento que ele tenha morrido muito cedo porque talvez a gente pudesse conversar melhor. E às vezes, às vezes eu fico pensando assim se tipo e hoje em dia será que ele ainda tá vivo? Né? Não sei. Não sei. Será que ele teria, até quando ele teria ido, né. Tipo…. Ou será que ele teria morrido de alguma outra coisa? Ou será que ele teria tido um derrame? Sei lá, né. Não existe se na história, mas eu acho que é isso, enfim, é….. Eu acho que é isso assim. É também, né, acho que é importante também pontuar que ele é de uma geração de homens héteros que não gostavam de usar preservativo e que achavam normal, não é, ter relacionamentos extraconjugais e que, enfim, né, uma cultura bem machista. Várias coisas, né. E foi bem numa fase em que o aumento do contágio tava concentrado mais em relações… Tava bem saindo dessa fase de estigma da doença gay, pela punição e tal, e entrando na família tradicional brasileira. Então, eu acho que é isso assim.